05 dezembro, 2012

Ursos Domesticados: Masculinos vs Genuínos

// Versão longa do artigo publicado no número 2 da revista Quïr  [Julho de 2012] //

Nação! 

Hoje começamos por fazer algumas perguntas à população masculina numa tentativa de descortinar um dos maiores fenómenos gay lisboeta:

- Sentes por vezes que, como homem gay, tens a tua masculinidade posta em causa e gostarias de mostrar ao mundo que embora gostes de pilinhas és, na mesma, um grande garanhão? 
- Sentes-te forçado a comportar-te como uma besta cavalar mal cheirosa para que não te identifiquem como uma florzinha e estás farto que as tuas amigas pensem que percebes de moda e de design de interiores? 
- Já pensaste inclusive em fazer parte das equipas de rugby gay mas tens medo de te aleijar? 
- Gostarias de te sentir mais atraente mas achas as mensalidades do Holmes Place um bocadinho fora do orçamento?

Se as tuas respostas foram “sim”, não desesperes porque nós temos a solução para ti! O único pré-requisito é que largues as dietas e que deixes crescer a barba. Exactamente, aquilo que te propomos é que sigas o exemplo de milhares de homens gay deste país e que te tornes num BEAR! Sim, num URSO! Não sentes já uma mão cheia de testosterona a invadir-te o corpo acima?

Mas que raio é isso de ser um urso? - perguntam vocês, confusos. 

De forma simples, ser-se um Urso, hoje em dia, corresponde a ser-se um homemzarrão à séria; e é por isso que a ideia parece ser tão interessante. Ouçamos as histórias de inúmeras pessoas que já se converteram ao Urssismo e que agora passeiam alegremente pelos novos bares do Príncipe Real:

Telmo
“Eu antes era uma bichinha triste, maricas e não tinha sexo, mas desde que comecei a usar barba e a descrever-me como "masculino e discreto" a minha vida mudou completamente! A minha mãe até voltou a falar comigo!”

Francisco
“Antes eu tinha inveja dos meus amigos e achava-me feio e gordinho, mas desde que percebi que os gordos com barba não são gordos - são ursos! - voltei a sentir-me confiante! Até já tenho novos amigos no Facebook!”

Pois é malta, basta passearmos pelo Construction, pelo Tr3s, pelos Woofs, ou pela generalidade da Internet  queer portuguesa para percebermos que a Lisboa masculina gay encontrou finalmente o seu escape para a depressão e para a falta de amor próprio. Sim! Agora somos todos Bears ou felizes por, de alguma forma, fazermos parte dessa ideologia mágica (culto?). 

Longe estão já os dias em que não sabíamos como responder aos insultos de "maricas", "bicha" ou "paneleiro”. Hoje, somos orgulhosamente "ursos", "daddies", "chasers" ou qualquer outro nome fabuloso que esta comunidade inventou para se sentir menos mal consigo própria. 

“Somos homens a sério!” dizem, e embora muitos ainda se sintam atraídos por putos lingrinhas e amaricados, fazem parte de uma comunidade "superior" que voltou às raízes da masculinidade - morte à metrossexualidade!, aclamam.

Espera lá. De onde veio tudo isto? 

Bem, inicialmente ser-se Urso significava ser-se um homem gay sem se estar demasiado preocupado com o corpo. Era um poder beber cerveja de caneca à vontade, ter-se comportamentos tradicionalmente masculinos e ser-se livre para se ter barriga ou ser-se peludo. Era um perceber que podíamos ser gay sem isso se reflectir necessariamente na nossa identidade de género. E por ser uma ideologia que seguia uma linha de pensamento libertadora - porque rejeitava os preconceitos relativos à população masculina gay - era uma coisa bonita.

Hoje em dia, no entanto, parece que a coisa evoluiu para uma versão deprimente e distorcida da ideia inicial onde ser-se urso é basicamente não se ser uma "bichinha". E isso já não é tão interessante. O que aconteceu, parece, foi a normalização e legitimização do "masculino e discreto" do "não és homem não és nada" e da ODE SUPREMA À TESTOSTERONA!!

Qualquer traço não remotamente associado ao da tradicional masculinidade passou a ser na opinião pública gay masculina uma coisa impensável. Qual quê, andróginia, "se quisesse gajas não era gay".

Passou-se a assumir que, de repente, os homens gays já não são pessoas individuais com características específicas que os preenchem mas antes tabelas de coisas que os fazem "mais ou menos homem". E quando mais homem, melhor, "que não queremos cá bichas!" Caluda a todos aqueles que por acaso até se sentem atraídos por homens sensíveis e ou rapazes mais delicados!

Enfim. É uma estupidez. Saudável é gostar das pessoas por aquilo que elas são, não pelos estereótipos em que achamos que elas encaixam. 

Urso?
É claro que todos temos o direito de nos expressarmos como quisermos e de estarmos em que espectro nos apetecer da nossa identidade de género e sexual, mas esta conversão meio repentina em massa ao “Ursismo” como contra-argumento da discriminação e da estereotipação da comunidade queer é triste porque - para além de ser intrinsecamente sexista -, segrega, na mesma, grande parte desta mesma comunidade.

E a ideia aqui não é sermos “contra” os bears. A questão é termos antes dois dedinhos de testa para rejeitarmos toda a parvoíce que vem muitas vezes implícita no mundo Bear do "eu sou melhor do que tu porque sou muito homem e tu és uma bichinha".

Até porque se é mesmo uma questão de identidade, qual é o sentido de nos definirmos pela oposição? De gostarmos de nós próprios não por aquilo que somos mas por aquilo que não somos? 
É quase como se ao nos perguntarem qual é a nossa nacionalidade nós respondermos que "não somos espanhóis" (e depois acrescentarmos estereótipos sobre os espanhóis). 

Parece, aliás, que a insegurança é tanta que com medo de não sermos “homens super a sério” precisamos de estar constantemente a reforçar ao mundo de que "Não somos mulheres!"; e pior, fazemos isso de uma forma completamente idiota associando ao feminino tudo o que é mau (e ao masculino tudo o que é bom): "sou homem! sou bom na cama! sou forte! sou corajoso! não sou uma gaja! não sou feminino! não sou promíscuo! não sou frívolo! não sou submisso!"  etc.. Não é isto profundamente sexista e desnecessário?

Se quando nos dizem que "a homossexualidade é errada" nós respondemos com "Não!, homens femininos é que está errado!", não estamos só a perpetuar a discriminação? Não aqui é a única coisa verdadeiramente errada a falta de liberdade para sermos como quisermos?

Enfim. Deixemos os preconceitos de lado e tenhamos antes a liberdade para sermos a combinação de  grandalhões, lingrinhas, emotivos, mauzões, "masculinos" e "femininos" que quisermos. Sejamos aquilo que quisermos desde que não nos achemos uns melhores do que os outros. Até porque se fossemos todos iguais não seria isso uma valente seca?

Mais ou menos "masculinos" interessa alguma coisa se não formos pessoas genuínas?


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Na Quïr


2 comentários:

  1. Bom artigo de opinião!

    Infelizmente, eu já tinha previsto isto há muito tempo...

    Barbies Depiladas
    http://adoroo.com/tudo-que-curtimos/index.php/90-emocoes/20026-barbies-depiladas

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  2. Eu sou urso e concordo com esta opnião. Sou activista LGBT e voluntario da ILGA e sempre defendi que não deve haver gays compartimentados, mas sim, a diversidade é um factor de riqueza para a comunidade.
    Alem disso porque existem ursos atraidos por "bichas modernas" e vice-versa (LOL)

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