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Video nas notícias (imagem roubada do Dezanove) |
Ponto 1. Estamos a falar de dois gajos masculinos facilmente integrados no seu papel de género e um deles com 1,90. As maiores vítimas de violência de género e sexualidade continuam a ser as pessoas trans, mulheres, pessoas não binárias, pessoas com expressões de género não normativas e imigrantes ou de minorias étnicas. Basicamente este casal não cabe em nenhuma dessas identidades ou expressões. É perfeitamente normal que mesmo que as pessoas se sentissem com vontade de interagir negativamente com eles, o facto de serem dois homens masculinos e altos seja um factor altamente dissuasor. Hell, espetem bâton e uma saia num deles e vejam a velocidade com os insultos surgiam. Acontece todos os dias.
Ponto 2. Lugares como o Chiado, Rossio e o Parque das Nações (a maior parte dos lugares no video) não são nem reflexo do resto de Lisboa, nem reflexo do resto de Portugal. A experiência de um casal do mesmo sexo no Vasco da Gama não é reflexo absoluto nenhum de uma vivência LGBT em Portugal. É perguntar a todas as pessoas que vivem em lugares que não os do video. Até porque..
Ponto 3. A mulher lésbica que há 7 meses atrás foi espancada no Porto por um taxista em plena Praça da República não vivia também neste país miraculosamente inclusivo? Temos a memória assim tão curta?
Ponto 4. Olhando para o conteúdo que o canal que fez o video produz, é claro que o seu focus é em mensagens "sexys" (de Marketing sexy: simples, divertido, fácil de digerir) e sexualizado de e para homens gays (não necessariamente mais LGBT abrangente que essa população). Não surpreende portanto que uma óptica queer, trans, feminista, interseccional faça parte do discurso do Pedro e do Lorenzo nem necessariamente da sua forma de ver a discriminação em Portugal.
Ponto 5. Videos como este, que não têm um grande parentises no fim a explicar que aquela não é uma situação representativa nem universal porque existe uma enorme diversidade de identidades LGBT e de discriminações associadas a essas vivências de que nenhum dos dois personagens é vítima, servem apenas como falsas provas na narrativa do "as coisas até estão bem", "até se pode andar na rua", "vês, já nem há discriminação". E acaba por servir apenas para invalidar as experiências de violência e discriminação que todos os dias lutamos para visibilizar.
Conclusão:
Sim, é menos provável que dois gajos masculinos de mãos dadas sejam assediados e agredidos no centro de Lisboa numa tarde de verão em ruas cheias de gente. Não, isso não prova absolutamente nada sobre a violência homo-lésbi-transfóbica ainda existente neste país. Aliás, o avanço de uma civilização deve medir-se pela forma como trata os seus cidadãos mais vulneráveis, e não como trata aqueles que estão mais confortáveis e privilegiados, ainda que dentro de identidades minoritárias. Era ver o quão diferente seria este video se os seus personagens fossem mais "femininos", mulheres, negros ou com qualquer outra identidade menos dominante.
É a ouvir o dia-a-dia das pessoas LGBTQ que percebemos as dificuldades e a violência de que elas ainda são vítimas, especialmente quando estão sozinhas por estes recantos mais ou menos urbanos do país, e quando lhe são ainda negadas vidas plenas e acesso sem entraves à saúde, trabalho, segurança, família, etc.
Jovens LGBTQ expulsos de casa? Mulheres lésbicas e bissexuais agredidas na rua? Pessoas trans a quem é recusado trabalho, saúde e negada a identidade? Nada! O Pedro e o Lorenzo andaram de mão dada na rua no Chiado sem grandes problemas, por isso está tudo bem!
Parece bonito alimentarmos o nosso ego com a fantasia de que o país em que vivemos é um fascínio de evolução civilizacional, especialmente quando o queremos comparar a outros lugares onde a violência e a discriminação são mais imediatas e explícitas. Mas muitas vezes a homofobia e a transfobia em Portugal são apenas isso: menos imediata e menos explícita, pelo menos no que toca a homens gays. No entanto, a todas as pessoas que não são homens gays masculinos, cisgéneros e brancos tudo na sua discriminação é, pelo contrário, imediato e explícito.
E também, mesmo que em Portugal já só existissem olhares de desconforto e curiosidade face a casais do mesmo sexo na rua, não são isso também formas fortes de controlo e dominação dos espaços públicos? É que se facilmente descartamos isso num video que esperava registar violência, vale a pena então perguntarmos porque é que na ausência aparente dessa violência, qual é a razão para a maioria das pessoas LGBT* escolher viver ainda "escondida" e protegida em máscaras cis-hetero. Porque será? Porque são tontinhas e/ou cobardes? Ou porque, pelo contrário, sabem bastante bem o risco e as consequências dessa exposição? Não será porque de facto já conhecem inúmeras histórias de violência, porque sentem a insegurança na pele diariamente e porque já testemunharam e testemunham diariamente reacções negativas e micro-agressões?
Enfim. Vale a pena fazer estas perguntas antes de engolirmos narrativas fáceis de mundos perfeitos que parecem, ainda que não intencionalmente, querer invalidar vidas inteiras testemunhas de discriminação e de violência hetero e cis normativa. Até porque Portugal-utopia-arco-íris que se conheça, só mesmo talvez durante as marchas do orgulho LGBT, e mesmo assim... **