17 janeiro, 2014

Crianças Referendadas

É isto que vai acontecer: No dia do referendo e nas semanas antes, eu - que sou uma criança com duas mães ou dois pais que sempre foram o meu modelo e concepção de família, de afectos e de segurança - vou ver o meu país inteiro a querer decidir e a querer explicar-me se a minha família é real ou não, e se é pior que todas as outras.

Eu que em minha casa sempre tive aquelas duas pessoas, como nas outras casas existem outras, vou ser engolida numa tempestade de conversas e de discussões sobre o valor das minhas figuras parentais. Na televisão, na escola, na rua, todos vão andar questionar que "fantochada" de família é esta que eu sempre tive em casa que sempre me deu tudo aquilo que eu precisava.

Vão convidar a escola inteira, o hospital, o centro comercial, a paragem de autocarros, a mercearia e aquele café no fundo da rua para uma conversa pública e vão obrigar-me a sentar-me lá no meio, juntamente com todas as outras meninas e meninos que também têm dois pais ou duas mães - e lá, vão discutir se as nossas mães e se os nossos pais existem de facto, se prestam e se são piores que os de todos os outros.

E eu até conheço meninas e meninos sem pais nem mães. Será que ter estes meus dois é ainda pior do que não ter nenhum? Ou pior do que ter daqueles que batem e abusam dos filhos?

Mas que monstros são estes que eu tenho em casa que sempre me deram todo o amor que eu precisava? Que pessoas são estas que sempre estiveram ao meu lado, mas que os outros insinuam que não são a minha família de facto? Que família é esta que o meu país sugere que não é real, mas que eu amo e da qual preciso desde que me lembro de existir?

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Quando fazemos um referendo sobre questões de família, não podemos ignorar o facto de que esta questão é muito mais do que um recolher de votos. Fazer um referendo em que se pergunta se casais do mesmo sexo podem adotar ou se uma pessoa pode co-adotar as crianças de um parceiro do mesmo sexo, é iniciar uma conversa com todas as crianças de todas as famílias que existem hoje em dia que estão hoje representadas nas perguntas do referendo.

Não é apenas uma gincana de votações. É uma invasão e um ataque à vida de todas as famílias homoparentais hoje em Portugal, mas, em especial, um ataque às suas crianças quando através destas perguntas sugerimos e admitimos que talvez estas pessoas não existam, que talvez não sejam merecedoras de reconhecimento, e que talvez não mereçam a nossa protecção e o nosso respeito.

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Os políticos deste país recusaram o debate civilizado e construtivo. Preferiram levar para a rua, para o mínimo denominador comum, os direitos humanos básicos das nossas famílias. Preferiram ignorar os pareceres e recomendações de académicos e profissionais de saúde e da família, preferiram ignorar a evidência de que somos dos únicos quatro países na Europa sem coadoção para casais do mesmo sexo (juntamente com a Rússia, a Roménia e a Ucrânia), preferiram ignorar o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que nos diz que isto é um violação dos Direitos Humanos, preferiram ignorar o debate sobre este tema que aconteceu na Assembleia da República, preferiram ignorar os peritos consultados nesse debate, e preferiram ignorar a subsequente aprovação que esta matéria teve que agora - do nada - se rejeita, de repente, para se fazer um referendo.

O que os nossos políticos nos dizem é que não são sensíveis à razão, nem ao processo democrático quando se recusam a admitir que as nossas famílias existem. Escolhem envergonhar-nos, esconder-nos e ridicularizar-nos quando se recusam a ouvir-nos, e a falar connosco e com as nossas crianças. Tomam antes o caminho de nos tornarem, à força, nas vítimas que sempre sugeriram que éramos (mas que não somos) expondo-nos ao ridículo de um lavar de roupa suja público ilegítimo, criminoso, e perigoso que é um referendo sobre direitos humanos de minorias e das nossas famílias.

E, pior, à custa das crianças cujos direitos tanto invocam estar a defender.

Resultados? Uma democracia enfraquecida, um envergonhar de toda a classe política, um redobrar dos mecanismos de discriminação homofóbica em Portugal, e um fragilizar das famílias que só pediram para serem reconhecidas.

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