11 agosto, 2015

Esqueçam tudo o que sabem, video prova que Portugal é afinal um paraíso LGBT

All right. Vamos lá falar então do video que anda por aí a circular na internet em tudo o que é canal LGBT internacional sobre um casal gay português que se filmou a andar de mão dada pelas ruas de Lisboa e quer provar que já não existe homofobia em Portugal. Devemo-nos todas derreter de orgulho por vivermos num país tão incirvelmente CIVILIZADO e PROGRESSIVO, ou vale a pena vermos para além do óbvio para perceber a validade disto tudo?

Ponto 1. Estamos a falar de dois gajos masculinos facilmente integrados no seu papel de género e um deles com 1,90. As maiores vítimas de violência de género e sexualidade continuam a ser as pessoas trans, mulheres, pessoas não binárias, pessoas com expressões de género não normativas e imigrantes ou de minorias étnicas. Basicamente este casal não cabe em nenhuma dessas identidades ou expressões. É perfeitamente normal que mesmo que as pessoas se sentissem com vontade de interagir negativamente com eles, o facto de serem dois homens masculinos e altos seja um factor altamente dissuasor. Hell, espetem bâton e uma saia num deles e vejam a velocidade com os insultos surgiam. Acontece todos os dias.

Ponto 2. Lugares como o Chiado, Rossio e o Parque das Nações (a maior parte dos lugares no video) não são nem reflexo do resto de Lisboa, nem reflexo do resto de Portugal. A experiência de um casal do mesmo sexo no Vasco da Gama não é reflexo absoluto nenhum de uma vivência LGBT em Portugal. É perguntar a todas as pessoas que vivem em lugares que não os do video. Até porque..

Ponto 3. A mulher lésbica que há 7 meses atrás foi espancada no Porto por um taxista em plena Praça da República não vivia também neste país miraculosamente inclusivo? Temos a memória assim tão curta?

Ponto 4. Olhando para o conteúdo que o canal que fez o video produz, é claro que o seu focus é em mensagens "sexys" (de Marketing sexy: simples, divertido, fácil de digerir) e sexualizado de e para homens gays (não necessariamente mais LGBT abrangente que essa população). Não surpreende portanto que uma óptica queer, trans, feminista, interseccional faça parte do discurso do Pedro e do Lorenzo nem necessariamente da sua forma de ver a discriminação em Portugal.

Ponto 5. Videos como este, que não têm um grande parentises no fim a explicar que aquela não é uma situação representativa nem universal porque existe uma enorme diversidade de identidades LGBT e de discriminações associadas a essas vivências de que nenhum dos dois personagens é vítima, servem apenas como falsas provas na narrativa do "as coisas até estão bem", "até se pode andar na rua", "vês, já nem há discriminação". E acaba por servir apenas para invalidar as experiências de violência e discriminação que todos os dias lutamos para visibilizar.

Conclusão:
Sim, é menos provável que dois gajos masculinos de mãos dadas sejam assediados e agredidos no centro de Lisboa numa tarde de verão em ruas cheias de gente. Não, isso não prova absolutamente nada sobre a violência homo-lésbi-transfóbica ainda existente neste país. Aliás, o avanço de uma civilização deve medir-se pela forma como trata os seus cidadãos mais vulneráveis, e não como trata aqueles que estão mais confortáveis e privilegiados, ainda que dentro de identidades minoritárias. Era ver o quão diferente seria este video se os seus personagens fossem mais "femininos", mulheres, negros ou com qualquer outra identidade menos dominante.

É a ouvir o dia-a-dia das pessoas LGBTQ que percebemos as dificuldades e a violência de que elas ainda são vítimas, especialmente quando estão sozinhas por estes recantos mais ou menos urbanos do país, e quando lhe são ainda negadas vidas plenas e acesso sem entraves à saúde, trabalho, segurança, família, etc.

Jovens LGBTQ expulsos de casa? Mulheres lésbicas e bissexuais agredidas na rua? Pessoas trans a quem é recusado trabalho, saúde e negada a identidade? Nada! O Pedro e o Lorenzo andaram de mão dada na rua no Chiado sem grandes problemas, por isso está tudo bem!

Parece bonito alimentarmos o nosso ego com a fantasia de que o país em que vivemos é um fascínio de evolução civilizacional, especialmente quando o queremos comparar a outros lugares onde a violência e a discriminação são mais imediatas e explícitas. Mas muitas vezes a homofobia e a transfobia em Portugal são apenas isso: menos imediata e menos explícita, pelo menos no que toca a homens gays. No entanto, a todas as pessoas que não são homens gays masculinos, cisgéneros e brancos tudo na sua discriminação é, pelo contrário, imediato e explícito.

E também, mesmo que em Portugal já só existissem olhares de desconforto e curiosidade face a casais do mesmo sexo na rua, não são isso também formas fortes de controlo e dominação dos espaços públicos? É que se facilmente descartamos isso num video que esperava registar violência, vale a pena então perguntarmos porque é que na ausência aparente dessa violência, qual é a razão para a maioria das pessoas LGBT* escolher viver ainda "escondida" e protegida em máscaras cis-hetero. Porque será? Porque são tontinhas e/ou cobardes? Ou porque, pelo contrário, sabem bastante bem o risco e as consequências dessa exposição? Não será porque de facto já conhecem inúmeras histórias de violência, porque sentem a insegurança na pele diariamente e porque já testemunharam e testemunham diariamente reacções negativas e micro-agressões?

Enfim. Vale a pena fazer estas perguntas antes de engolirmos narrativas fáceis de mundos perfeitos que parecem, ainda que não intencionalmente, querer invalidar vidas inteiras testemunhas de discriminação e de violência hetero e cis normativa. Até porque Portugal-utopia-arco-íris que se conheça, só mesmo talvez durante as marchas do orgulho LGBT, e mesmo assim... **

6 comentários:

  1. Concordo com este vosso post.
    Finalmente que alguém venha acordar o pessoal do sonho para a realidade
    Este video que foi feito, não prova que não exita descriminação Portugal, alias isto é só atirar areia para os olhos das pessoas que não querem ver o problema da descriminação
    Basta olhar para alguns relatórios mais recentes de organizações LGBTI sobre o assunto, inclusive no acesso a coisas basicass do dia dia como saúde e educação, basta relembrar alguns casos de violência contra LGBTI que foram relatados na comunicação social, basta falar com algumas pessoas por este pais fora(Portugal é muito mais que Lisboa), para se perceber que esta não assume de todo a sua identidade e que são descriminadas vitimas de violência dentro das suas propias familias, basta andar por Lisboa no "meio LGBTI" e ouvir os varios comentários contras os rapazes que não são "maculinos" as raparigas que não são "femininas", ect. ect.

    Temos evoluido muito, e as coisas não são tão mas como eram a uns tempos atras, agora ainda estamos muito loge deste "paraiso" que nos querem tentar passar

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  2. O vídeo deles não mostra nada da realidade portuguesa. É tudo areia para os nossos olhos!

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  3. "homo-lésbi-transfóbica" homofobia inclui lésbicas, "homossexual" significa "sexualmente atraído pelo mesmo sexo", tendo em conta que "homo" significa "igual" (como em "homogéneo"). Não faz sentido a expressão "homo-lesbi-transfóbica", é um pleonasmo.

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    1. Isso seria apenas se a violência contra as mulheres lésbicas não fosse especialmente relevante e merecedora de especial destaque. Nem tudo no activismo se define pela linguística.

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  4. Eu acho muito importante dizer o que vocês disseram no post relativamente ao vídeo. É totalmente verdade o que vocês disseram e é óbvio que o vídeo não prova nada. Só que para mim, vocês caíram no mesmo erro das pessoas que têm o discurso "este vídeo prova que Lisboa é o paraíso, não há homofobia", o erro de dar uma importância ao vídeo que ele não tem. Isto não é um vídeo de um grupo activista, não é um vídeo institucional, não é uma reportagem, não é um estudo académico. É um vídeo de um casal de homens que faz vídeos de entertenimento para o youtube e que fez este vídeo no seguimento dos vídeos de Moscovo e Kiev. Acho que não se pode exigir muito, em termos de "mensagem activista". As vossas críticas parecerem-me um pouco desajustadas nesse sentido.

    Ponto 1, é verdade, mas eles também não têm "culpa" de ser homens brancos, masculinos e altos.
    Ponto 2, ok, eles até deram um perninha à cova da moura, mas eles também não iriam estar a dar a tour de mão dada por Portugal inteiro para o vídeo ser válido.
    Ponto 4, claro que sim, mas há algum mal em fazer conteúdo deste género? É reprovável? Um canal de homens gay não tem necessariamente ser activista, LGBT, etc

    Relativamente ao ponto 5, eu nem tinha pensado muito por esse prisma, mas vocês têm razão. Ainda assim, tendo em conta que maioritariamente os homens gays em Portugal são complexados e têm vergonha do que são, eu achei positiva a mensagem deles de que "se tens vontade dar as mãos, dá as mãos".
    Eu obviamente também concordo com o que disseram no final do post. Só que em vez de fazer essa crítica com base no vídeo deles, acho que seria mais inteligente vocês, enquanto grupo activista, fazer vídeos com capacidade de viralizar que passem essa mensagem. Fica a sugestão.

    (Btw, estou com saudades dos vossos vídeos/podcasts. Adoro!)

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    1. No video é-nos dado a entender que, objectivamente e sem dúvida, Portugal não tem homofobia. Foi apresentado como video informativo, não mero entretenimento. E, por se tomar a sério nesta capacidade de informar, (eles, as novas estrelas gay de Portugal, sabem bem que o são, que têm publico) é uma "mensagem activista", ou aparenta ser.
      Ponto 1, eles não têm "culpa" de serem privilegiados, mas têm de compreender esse seu privilegio e não assumir que todos são como eles. Não podem ser os únicos objectos de estudo.
      Ponto 2, como aparenta ser um video informativo, sim, deviam dar a tour de mão dada em grande parte de Portugal, ou de Lisboa, para poderem assumir que Lisboa é uma cidade super friendly para toda a gente.
      Ponto 4, é reprovável lançarem o video como A verdade aplicável a toda a gente. Um canal de (e para) homens gay famoso como o deles não têm de ser activista, mas não o sendo passa a ser o equivalente à TVI ou ao Dezanove (aliás, a pseudo-parceria deles com o Dezanove era de esperar): material de entretenimento de massas que não coloca questões, não luta por nada (para tentar não chatear ninguém), não explora as minorias dentro da minoria LGBT+, não melhora a vida de ninguém.

      (Concordo com a ultima parte. Onde estão os podcast? I need them in my life!)

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