01 outubro, 2012

Alka Seltzer para a Alma.

Nação! 
Andamos em baixa produção, mas hoje estamos de volta.

O QueerLisboa passou, (viva o Queer!) e hoje queríamos falar de um filme que nos marcou mais do que os outros: Weekend de Andrew Haigh. 

É, claro está, um filme espectacular. (Que nós somos pessoas crescidas e construtivas e também dizemos bem de coisas.) Mas porque é que o filme nos pareceu tão importante para lhe dedicar todo um post? Vamos descobrir.

A história desenvolve-se em torno de um romance que dura o fim-de-semana que dois rapazes têm juntos até se separarem; mas isso, como em qualquer outro bom filme, serve apenas de mote para uma outra conversa. Aqui, o verdadeiro focus é uma brilhante (ainda que disfarçada) discussão sobre o que é ser-se queer hoje em dia, sobre o nosso papel na sociedade e sobre o confronto do debate mainstreaming queer vs descrição/vergonha. 
Ena tanta ideologia chata! - assusta-se já o público. Mas não temeis!

A coisa funciona porque é diálogo e debate relevante mas numa lógica que não é intrusiva ou desligada - Deus sabe que as pessoas odeiam aprender coisas novas ou ouvir falar de política, sociologia e afins.. E depois, como diz o ditado: duas carinhas larocas e a malta fica logo receptiva. Pois claro. E funciona.

Vejamos.
Existem vários momentos grandes no filme que se podiam realçar e nós escolhemos para falar aqui daquele em que a personagem Russel, sem saber, toca exactamente naquilo que nós andamos há já tanto tempo a tentar perceber na nossa bonita comunidade.
"- You know.. When I’m at home, I’m absolutely fine. I don’t care. I don’t even think about it. I just.. I’m not embarrassed, I’m not ashamed, and I don’t wanna be straight. I’m happy. I’m happy being gay.
- But..?
- It’s when I go outside. Like, you know, just to Jamie’s, or to Tesco’s, or to work. It’s hard to explain. It kinda feels like I’ve got indigestion. It actually feels exactly like indigestion. It just makes me angry. You know, that I feel like that because it is so fucking pathetic. I'm a grown man and I look at you and see you, and you can do it and you're amazing. I just don’t understand why I can’t."  [tradução no final]


Pois bem. Indigestão, diz ele. E nós já tão viciados em Alka Seltzer. Faz sentido, não faz?

As articulações diárias de que está tudo bem e de que as pessoas não são más - que até "nos aceitam" sem problemas (como se houvesse alguma coisa para aceitar) - são potencialmente infinitas. Sim. Mas aquilo que parece escapar à maioria das pessoas são estas formas subentendidas - e por isso mesmo fortíssimas - de controlo e opressão indirecta. Estas indigestões causadas pelo mundo real, pelos olhares, pelas conversas e pelas expectativas das pessoas/famílias/amigos/círculos de gente próxima à nossa volta. Das suas conversas que nos excluem e dos media que nos estereotipam e silenciam: "Sejam normais!", "Sejam discretos!", "Não sejam estranhos nem sexuais!", "Não chamem a atenção!" - ouvimos e repetimos nós já sem pensar. 

Tanto que começa já a ser um discurso velho, este da descrição. E embora muitos de nós se esforcem por fazer este requisito diário de descrição-maior-que-a-vida passar por uma necessidade de segurança, a verdade que o filme tão bem realça é que às vezes isso tem mais a ver com desconforto e vergonha; com a possibilidade de nos confrontarmos nós próprios com os nossos fantasmas das coisas que ficaram mal resolvidas numa vida inteira a ouvir discursos errados. 

Mas compreendamos: todos nós temos indigestões. Pequenas, grandes e em todas as cores do arco-íris, quer nos deixemos guiar mais ou menos por elas, tod@s as sentimos. Sentir desconforto é, aliás, a nossa versão do "normal".

E sejamos as pessoas mais bem resolvidas deste mundo ou não, hão-de haver sempre aqueles momentos em que o monstrinho nos arranha ao de leve lá por debaixo da pele e nos diz que, se calhar, podíamos estar a poupar os outros esta nossa "estranha forma de vida".
Que mesmo que andemos de mãos dadas na rua sem vergonha, parece que há-de haver sempre uma tia-avó afastada ou uma professora da primária que nos fará hesitar, nem que por meio segundo apenas, antes de conseguirmos encher o peito de ar e de nos lembrarmos de quem realmente somos. 

É, talvez, como tudo o resto: uma questão de exercício. Treinar e treinar para banalizarmos nos outros (mas fundamentalmente em nós próprios) o acto de estarmos confortáveis com o falar sobre e viver a nossa própria sexualidade, identidade de género e vida de uma forma aberta e confortável. 

Que é preciso, como argumenta no filme o Glenn, lutarmos contra essa voz que nos diz para sermos discretos. Essa voz que no sugere que talvez seja melhor não forçarmos os heteros (e todos os outros, que também somos nós) a ouvirem estas histórias de engates, amor, sexo, comunidade e vivências queer, só porque eles as podem achar nojentas ou desapropriadas. O que é ainda mais ridículo quando, de forma oposta, eles raramente se limitam antes de o fazerem connosco - nem que seja através dos media e da sociedade de forma geral. Nós somos bombardeados diariamente com os modelos deles e com sexualidades hetero, binárias, cisgéneras e chauvinista de uma forma avassaladora.

Compreendamos, portanto, (mesmo que demoremos a admiti-lo) que isto que sentimos é opressão e controlo social dissimulado, e pior porque somos nós próprios os nossos agentes de controlo para o silêncio. Nós, que em fúrias inexplicáveis nos parecemos levantar mais contra os que falam do que os que nos calam e anulamos constantemente canais de diálogo alternativo. Que nos deixamos convencer pela heteronormatividade e a apregoamos não lhe dando resposta.

E pronto, é isso.

Ficámos felizes por ver este filme na inauguração do Queer Lisboa - cheio de amigas e amigos bichas sentados a ouvirem uma retórica provavelmente alternativa para alguns deles. (Embora admitamos que o público do festival, na sua génese, não seja provavelmente o mais cobarde de Lisboa..) 

Mas verdade seja dita que, nisto do universo artístico queer, às vezes parece que a coisa ou é sexo pelo sexo numa de transgressão vazia, ou então são discursos inconsequentes em tom de mártir nada orientados para o contra-ataque. Ainda assim, temos dias (e realizadores) bons que, de vez em quando, nos estimulam a massa cinzenta e o punho. E o Bichas fica satisfeito.

Porque é importante não esquecer que o mundo (e não apenas o nosso ghettozinho) tem de ouvir as nossas histórias. E estas nossas histórias têm de ser ouvidas outra e outra vez até deixarem de ser as nossas histórias de um ghettozinho particular para passarem simplesmente a ser histórias de pessoas, ponto.

E, pronto, com esta fácil balela inspiradora nos despedimos. Tenham uma boa vida e beijinhos à família.

Trailer.


--
"- Sabes.. Quando estou em casa, sinto-me absolutamente bem. Não quero saber. Nem sequer penso nisso. Sinto-me.. não tenho vergonha nem me sinto constrangido. Não quero ser hetero. Sou feliz. Sou feliz sendo gay.
- Mas..
- O problema é quando saio de casa. Sabes.. tipo quando vou à casa do Jamie ou às compras ou ao trabalho. É difícil explicar. Sinto-me tipo com uma indigestão. Aliás, é exactamente como estar com uma indigestão. Fico tão zangado por me sentir assim; foda-se, é tão patético. Sou um homem crescido e olho para ti e vejo-te e tu consegues e és espectacular. E eu não percebo porque é que eu não consigo."

Nenhum comentário:

Postar um comentário